domingo, 17 de abril de 2011

Câncer não começa com C de caixão

Parte do que senti ao descobrir um tumor

Na doação de órgãos para transplantes, o amor à vida e o medo da morte andam juntos, mas nem sempre na mesma direção. Uma família que doa os órgãos de um ente querido falecido, já não tem contato com o temor, porque o pior já aconteceu e nada mais a assusta. O amor e a coragem impulsionam suas decisões e atos. Mas aquela que não doa, talvez tema a morte até depois de ela já ter se consumado. E para aquele que aguarda uma doação, talvez o medo venha depois da angústia, da incerteza, do desalento e principalmente da esperança. 


Ciccione e morte  http://www.flickr.com/photos/simonini/2459644155/in/photostream/

Impossível reproduzir com exatidão a sensação que se tem ao descobrir-se portador de uma doença grave, por exemplo, o câncer.
Cada um terá a sua impressão única, tanto por ser inédita para si, como por ser estritamente pessoal. Diferente mas assemelhada à experiência de saltar de paraquedas ou de ser pai, por serem indescritíveis.

Após o médico me dar a notícia do câncer, eu saí do consultório incrédulo e desorientado.
A primeira novidade aparece ao entrar no carro e ligar o som automaticamente, o CD que há muito não saia de lá. Uma música que antes me falava de tudo e de nada em especial, ou de relacionamentos, de coincidências, casualidades, e era linda, passa a falar apenas de morte, de desesperança, de ausência e até saudade do futuro. Com certeza continua linda, mas agora dói.

Era a música abaixo, de autoria de um “ex-médico” (se é que existe isso) uruguaio chamado Jorge Drexler e exemplifica muito bem o que pretendo demonstrar:
Inoportuna


Tente ouvi-la só para conhecer e preste atenção na letra. Talvez você não seja o seu estilo, mas ele não importa agora.



Em seguida imagine que você acabou de ser informado pelo seu médico sobre a presença de um câncer no fígado, ou seio, ou próstata, ou pulmão. Então a ouça novamente!

Quem já não sabe
o aprenderá depressa:
A vida não para,
não espera, não avisa.
Tantos planos, tantos planos
virando espuma
Tu, por exemplo,
tão a tempo
e tão
inoportuna.

Eram melhores, os dias,
para arriar as velas.
Todo sinal ao meu redor
dizia: cautela.
Quanta estratégia não cumprida.
Aquela noite sem lua.
Tu, por exemplo,
tão bem vinda
e tão
inoportuna.

Quem sabe quando?
Quando é o momento de dizer: "Agora"?
Se tudo ao redor está te gritando:
"Sem demora, sem demora!"


Toda a poesia ensolarada se transforma em “noche sin luna”. Em caminho incerto.

“Tantos planes vueltos espuma”

Então eu mudo de música, pulo adiante e:


“El velo semitransparente

Del desasosiego

Un día se vino a instalar

Entre el mundo y mis ojos.”


La Vida Es Mas Compleja de Lo Que Parece

"O véu semi-transparente 
do desassossego,
um dia veio se instalar
entre o mundo e meus olhos"

De novo?

Sim! 

E o mesmo ocorre quando nos flagramos expectadores distanciados, de cenas cotidianas antes quase inócuas de tão corriqueiras. Por exemplo, ao vermos nossa família conversando no jantar e não somos parte daquilo. Até as cenas de pequenas birras ou brincadeiras adolescentes entre os filhos, se revestem de roupagem e iluminação mais refinada,  porém  nos dão uma clara sensação de perda iminente.
O sorriso da esposa é algo etéreo, como tudo o mais. O seu novo corte de cabelo não é algo prazeroso, posto que se desvanecerá em breve.

As reuniões de trabalho com suas emergências inadiáveis, são puro desperdício de intelecto e sentimentos sem o mínimo objetivo, porque as bases e os conceitos estão incorretos.

“Cuánta estrategia incumplida”

Praticamente todos os valores se alteram imediatamente.

E vem a conclusão de que amanhã estas coisas continuarão acontecendo porque elas são reais.
Eu é que me tornei volátil e a qualquer momento posso sumir.
Eu é que perdi a solidez e a constância.
Eu sou um, cinco ou dez segundos!
"Volver a ser, de repente, tan fragil como un segundo,
Volver a sentir profundo, como un ninho frente a Dios(Violeta Parra)
Eu sou de vapor.

Não pensamos nela, não falamos dela.
Vivemos como se fossemos imortais.
E falamos de horóscopos, de novelas e de filmes.
Mas a única certeza absoluta que temos nesta vida é a da morte.
Ela é efetiva.
Ela é matematicamente exata.
E não falamos dela!

E agora via a cara viva da morte. (Cazuza)

E sob esta nova ótica, ainda acreditando que podemos negociar, nos fazemos as fatídicas perguntas:
Eu teria alguma alegação incontestável em meu favor neste momento?
Existe algo que estou fazendo  ou farei que é importante para alguém ou para o mundo?
Existe alguma razão para que eu fique mais um tempinho por aqui?

Não!

Não só no meu, mas na maioria dos casos, a resposta será “NÃO!”.

Estive no mundo a passeio. Que desperdício! Que pena! Que mierda!

E quanto mais tempo persistir esta condição, mais você terá que conviver com a ausência do futuro.

Precisamos falar de morte com mais naturalidade e constância. Temos que decidir o que será feito de nossas posses quando as perdermos.
O que será feito de nosso corpo?

E aí vem a constatação alvejada:
Uma continuidade da vida física com um novo estado de consciência só será possível se houver um doador de órgãos. E um doador doa duas vidas ao mesmo receptor. No meu caso foram doados um fígado e uma visão (nova do mundo). E não só no meu, mas na maioria dos casos.

Já que somos todos de vapor. 
Precisamos de autocontrole.
Precisamos de humildade para ter desapego, até de nós mesmos.
Precisamos de solidariedade e empatia para nos colocarmos na pele de outras pessoas.

Em determinado momento, muito de nós repetirão a frase acima.

Não deixe a decisão apenas para sua família, avise-os ainda hoje que você é doador de órgãos.

Não tema a morte, ela virá de qualquer modo.
Ame a vida.
Deixe que o beijo dure!


La Edad Del Cielo 
No somos mas 

Que una gota de luz 

Que una estrella fugaz 
Una chispa tan solo en la edad del cielo 
No somos lo que quisiéramos ser 
Solo un breve latir en un silencio antiguo con la edad del cielo 


Calma todo esta en calma 

Deja que el beso dure deja que el tiempo cure 

Deja que el alma tenga la misma edad que la edad del cielo 


No somos mas 

Que un puñado de mar 

Una broma de dios 

Un capricho del sol 
del jardín del cielo 
no damos pie entre tanto tic tac 
entre tanto big-ban 
solo un grano de sal en el mar del cielo 

Calma todo esta en calma 
Deja que el beso dure deja que el tiempo cure 
Deja que el alma tenga la misma edad que la edad del cielo 
La misma edad que la edad del cielo 

Calma todo esta en calma deja que el beso dure 
Deja que el tiempo cure 
Deja que el alma tenga la misma edad que la edad del cielo 
Que la edad del cielo 

Calma todo esta en calma deja que el beso dure 
Deja que el tiempo cure 
Deja que el alma tenga la misma edad que la edad del cielo 
Que la edad del cielo


Texto de Fernando Cezar P Santos,

Portador de Hepatite C, Transplantado Hepático, Portador de Hepatite B
e extremamente sortudo!
com as participações fundamentais e muito especiais
dos amigos Ana "Flor" Barcellos - Animando-C
Rogério - @profBauru
Com agradecimentos a Jorge Drexler, Violeta Parra, Paulinho Moska, Cazuza, Simone e Zélia Duncan.
Também ao pessoal das imagens.


9 comentários:

  1. Obrigado Renata,
    Esforço para mostrar um pequeno exemplo do elo entre a Arte e a Medicina. http://medicineisart.blogspot.com/

    Obrigadão,
    Fernando

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  2. Olá,

    Em Outubro de 2008, após uma semana de internação hospitalar e vários exames clinicos e radiológicos, recebi uma notícia (em certa parte esperada) que era portador de um adenocarcinoma transverso direito ou então um câncer de intestino. Ao invés de pensar em morte, pensei no "C" de confiança na equipe médica que me atendia.

    Graças a Deus não me arrependi, desde o cirurgião, clinico geral, gastroenterologista e oncologista, todos fizeram um excelente trabalho e hoje aqui estou, plenamente realizado. Não é por outro motivo que tenho minha coluna (às quartas-feiras) no blog para falar de câncer e prevenção.

    Abraço

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  3. Caro Geraldo,
    Muito obrigado pelo apoio, pois pensamos do mesmo modo em relação ao C. Já tinha te visto no Twitter e agora conheci e gostei muito do teu Blog (http://pharisfaces.blogspot.com/), em especial a parte de Saúde.
    Nós temos o dever de falar!
    Grande abraço,
    Fernando

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  4. Olá, chefia....
    Sempre te admirei, pela sua luta e por seu carinho com todos, só não sabia ainda que és um poeta!
    Que sorte a nossa de estarmos contigo....
    Um grande beijo
    Olga

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  5. Cara amiga e colega Olga,

    Você, seu marido e filhos são muito carinhosos e agradeço muito pelas palavras, mas apenas a experiência foi minha, a poesia é de outros.
    E por falar em experiências: http://grupohercules.blogspot.com/2010/05/falando-de-transplante-parte-1.html

    Grande abraço,
    Fernando

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  6. Agradecemos imensamente ao profissional do Ministério responsável pelo comentário.
    Grande abraço,
    Fernando

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  7. Tocante o texto e todos os acompanhamentos. A espécie, em pleno século XXI, parece ter perdido a humanidade e falta-lhe essas referências, como aqui encontradas, para lhe fazer lembrar quem é.

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  8. Muito obrigado pelos elogios ao post e pelo carinho constante com o Grupo Hércules SC.

    Abração,
    Fernando

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