Parte do que senti ao descobrir um tumor
Na doação de órgãos para transplantes, o amor à vida e o medo da morte andam juntos, mas nem sempre na mesma direção. Uma família que doa os órgãos de um ente querido falecido, já não tem contato com o temor, porque o pior já aconteceu e nada mais a assusta. O amor e a coragem impulsionam suas decisões e atos. Mas aquela que não doa, talvez tema a morte até depois de ela já ter se consumado. E para aquele que aguarda uma doação, talvez o medo venha depois da angústia, da incerteza, do desalento e principalmente da esperança.
Ciccione e morte http://www.flickr.com/photos/simonini/2459644155/in/photostream/ |
Impossível reproduzir com exatidão a sensação que se tem ao descobrir-se portador de uma doença grave, por exemplo, o câncer.
Cada um terá a sua impressão única, tanto por ser inédita para si, como por ser estritamente pessoal. Diferente mas assemelhada à experiência de saltar de paraquedas ou de ser pai, por serem indescritíveis.
Após o médico me dar a notícia do câncer, eu saí do consultório incrédulo e desorientado.
A primeira novidade aparece ao entrar no carro e ligar o som automaticamente, o CD que há muito não saia de lá. Uma música que antes me falava de tudo e de nada em especial, ou de relacionamentos, de coincidências, casualidades, e era linda, passa a falar apenas de morte, de desesperança, de ausência e até saudade do futuro. Com certeza continua linda, mas agora dói.
Era a música abaixo, de autoria de um “ex-médico” (se é que existe isso) uruguaio chamado Jorge Drexler e exemplifica muito bem o que pretendo demonstrar:
Inoportuna
Tente ouvi-la só para conhecer e preste atenção na letra. Talvez você não seja o seu estilo, mas ele não importa agora.
Em seguida imagine que você acabou de ser informado pelo seu médico sobre a presença de um câncer no fígado, ou seio, ou próstata, ou pulmão. Então a ouça novamente!
Toda a poesia ensolarada se transforma em “noche sin luna”. Em caminho incerto.
“Tantos planes vueltos espuma”
Então eu mudo de música, pulo adiante e:
“El velo semitransparente
Del desasosiego
Un día se vino a instalar
Entre el mundo y mis ojos.”
La Vida Es Mas Compleja de Lo Que Parece
"O véu semi-transparente
do desassossego,
um dia veio se instalar
entre o mundo e meus olhos"
De novo?
Sim!
E o mesmo ocorre quando nos flagramos expectadores distanciados, de cenas cotidianas antes quase inócuas de tão corriqueiras. Por exemplo, ao vermos nossa família conversando no jantar e não somos parte daquilo. Até as cenas de pequenas birras ou brincadeiras adolescentes entre os filhos, se revestem de roupagem e iluminação mais refinada, porém nos dão uma clara sensação de perda iminente.
O sorriso da esposa é algo etéreo, como tudo o mais. O seu novo corte de cabelo não é algo prazeroso, posto que se desvanecerá em breve.
As reuniões de trabalho com suas emergências inadiáveis, são puro desperdício de intelecto e sentimentos sem o mínimo objetivo, porque as bases e os conceitos estão incorretos.
“Cuánta estrategia incumplida”
Praticamente todos os valores se alteram imediatamente.
E vem a conclusão de que amanhã estas coisas continuarão acontecendo porque elas são reais.
Eu é que me tornei volátil e a qualquer momento posso sumir.
Eu é que perdi a solidez e a constância.
Eu sou um, cinco ou dez segundos!
"Volver a ser, de repente, tan fragil como un segundo,
Volver a sentir profundo, como un ninho frente a Dios" (Violeta Parra)
Eu sou de vapor.
"Volver a ser, de repente, tan fragil como un segundo,
Volver a sentir profundo, como un ninho frente a Dios" (Violeta Parra)
Eu sou de vapor.
Não pensamos nela, não falamos dela.
Vivemos como se fossemos imortais.
E falamos de horóscopos, de novelas e de filmes.
Mas a única certeza absoluta que temos nesta vida é a da morte.
Ela é efetiva.
Ela é matematicamente exata.
E não falamos dela!
E agora via a cara viva da morte. (Cazuza)
E sob esta nova ótica, ainda acreditando que podemos negociar, nos fazemos as fatídicas perguntas:
Eu teria alguma alegação incontestável em meu favor neste momento?
Existe algo que estou fazendo ou farei que é importante para alguém ou para o mundo?
Existe alguma razão para que eu fique mais um tempinho por aqui?
Não!
Não só no meu, mas na maioria dos casos, a resposta será “NÃO!”.
Estive no mundo a passeio. Que desperdício! Que pena! Que mierda!
E quanto mais tempo persistir esta condição, mais você terá que conviver com a ausência do futuro.
Precisamos falar de morte com mais naturalidade e constância. Temos que decidir o que será feito de nossas posses quando as perdermos.
O que será feito de nosso corpo?
E aí vem a constatação alvejada:
Uma continuidade da vida física com um novo estado de consciência só será possível se houver um doador de órgãos. E um doador doa duas vidas ao mesmo receptor. No meu caso foram doados um fígado e uma visão (nova do mundo). E não só no meu, mas na maioria dos casos.
Já que somos todos de vapor.
Precisamos de autocontrole.
Precisamos de humildade para ter desapego, até de nós mesmos.
Precisamos de solidariedade e empatia para nos colocarmos na pele de outras pessoas.
“Una vida só, és poco para mí.” Sandra Alves Campos
Em determinado momento, muito de nós repetirão a frase acima.
Não deixe a decisão apenas para sua família, avise-os ainda hoje que você é doador de órgãos.
Não tema a morte, ela virá de qualquer modo.
Ame a vida.
Deixe que o beijo dure!
La Edad Del Cielo
La Edad Del Cielo
No somos mas
Que una gota de luz
Que una estrella fugaz
Una chispa tan solo en la edad del cielo
No somos lo que quisiéramos ser
Solo un breve latir en un silencio antiguo con la edad del cielo
Calma todo esta en calma
Deja que el beso dure deja que el tiempo cure
Deja que el alma tenga la misma edad que la edad del cielo
No somos mas
Que un puñado de mar
Una broma de dios
Un capricho del sol
del jardín del cielo
no damos pie entre tanto tic tac
entre tanto big-ban
solo un grano de sal en el mar del cielo
Calma todo esta en calma
Deja que el beso dure deja que el tiempo cure
Deja que el alma tenga la misma edad que la edad del cielo
La misma edad que la edad del cielo
Calma todo esta en calma deja que el beso dure
Deja que el tiempo cure
Deja que el alma tenga la misma edad que la edad del cielo
Que la edad del cielo
Calma todo esta en calma deja que el beso dure
Deja que el tiempo cure
Deja que el alma tenga la misma edad que la edad del cielo
Que la edad del cielo
Texto de Fernando Cezar P Santos,
Portador de Hepatite C, Transplantado Hepático, Portador de Hepatite B
e extremamente sortudo!
com as participações fundamentais e muito especiais
Com agradecimentos a Jorge Drexler, Violeta Parra, Paulinho Moska, Cazuza, Simone e Zélia Duncan.
Também ao pessoal das imagens.
Também ao pessoal das imagens.
Belo texto, bela música! Parabéns!!!
ResponderExcluirObrigado Renata,
ResponderExcluirEsforço para mostrar um pequeno exemplo do elo entre a Arte e a Medicina. http://medicineisart.blogspot.com/
Obrigadão,
Fernando
Olá,
ResponderExcluirEm Outubro de 2008, após uma semana de internação hospitalar e vários exames clinicos e radiológicos, recebi uma notícia (em certa parte esperada) que era portador de um adenocarcinoma transverso direito ou então um câncer de intestino. Ao invés de pensar em morte, pensei no "C" de confiança na equipe médica que me atendia.
Graças a Deus não me arrependi, desde o cirurgião, clinico geral, gastroenterologista e oncologista, todos fizeram um excelente trabalho e hoje aqui estou, plenamente realizado. Não é por outro motivo que tenho minha coluna (às quartas-feiras) no blog para falar de câncer e prevenção.
Abraço
Caro Geraldo,
ResponderExcluirMuito obrigado pelo apoio, pois pensamos do mesmo modo em relação ao C. Já tinha te visto no Twitter e agora conheci e gostei muito do teu Blog (http://pharisfaces.blogspot.com/), em especial a parte de Saúde.
Nós temos o dever de falar!
Grande abraço,
Fernando
Olá, chefia....
ResponderExcluirSempre te admirei, pela sua luta e por seu carinho com todos, só não sabia ainda que és um poeta!
Que sorte a nossa de estarmos contigo....
Um grande beijo
Olga
Cara amiga e colega Olga,
ResponderExcluirVocê, seu marido e filhos são muito carinhosos e agradeço muito pelas palavras, mas apenas a experiência foi minha, a poesia é de outros.
E por falar em experiências: http://grupohercules.blogspot.com/2010/05/falando-de-transplante-parte-1.html
Grande abraço,
Fernando
Agradecemos imensamente ao profissional do Ministério responsável pelo comentário.
ResponderExcluirGrande abraço,
Fernando
Tocante o texto e todos os acompanhamentos. A espécie, em pleno século XXI, parece ter perdido a humanidade e falta-lhe essas referências, como aqui encontradas, para lhe fazer lembrar quem é.
ResponderExcluirMuito obrigado pelos elogios ao post e pelo carinho constante com o Grupo Hércules SC.
ResponderExcluirAbração,
Fernando