São Paulo, 05 de março de 2010.
Prezados companheiros das ONGs e Grupos de defesa dos portadores de Hepatites virais
Tenho o prazer uma parceria estabelecida entre a Sociedade Brasileira de Hepatologia e a FAAP (Fundação das Associações de ex-atletas de Futebol) para uma grande campanha nacional de alerta a Hepatite C que deverá ser levada a termo até o mês de maio do corrente ano, no dia mundial da Hepatite C.
As hepatites Virais sentem falta de campanhas nacionais, as quais já se mostraram muito eficazes para a prevenção e o esclarecimento sobre a AIDS. Por mais de uma década o Brasil tem dedicado especial atenção à AIDS e tem demonstrado que é um país capaz de responder as suas demandas através do departamento DST/AIDS, motivo de orgulho para todos os brasileiros. Agora, sabiamente, este departamento do Ministério da Saúde aumentou o seu escopo de ação tornando-se o departamento DST/AIDS/Hepatites Virais, em reconhecimento a importância do tema.
Infelizmente as Hepatites Virais, embora como problema de saúde pública de impacto inigualável, ainda não conseguiu ter a sua visibilidade no limite da sua importância.
A Organização Mundial da Saúde reconhece que no mundo existem 300 milhões de portadores do vírus da hepatite B e 200 milhões do vírus da Hepatite C. No Brasil. Os dados são escassos, mas a maioria dos estudos demonstra heterogeneidade na distribuição do vírus da Hepatite B que se situa mais nas pequenas cidades situadas, sobretudo, nas regiões mais pobres do país (Norte e Nordeste), enquanto que o vírus da Hepatite C tem uma distribuição mais homogênea. A partir destes estudos, podemos definir que mais de 2.000.000 de brasileiros estão infectados, mas a maior parte deles se encontra fora da rede SUS, até porque esta é uma doença que evolui silenciosamente por 2 a 4 décadas.
A Hepatite C lota os ambulatórios de Hepatologia no país. É responsável pela indicação de mais de 80% das Biopsias de fígado na Bahia e por mais de 50% dos transplantes de fígado no país.
Apesar dos números alarmantes, poucos brasileiros alcançam a rede de saúde para tratar a sua doença. Também temos a necessidade de implantar mais consistentes programas de Educação Médica Continuada aliados à programas de educação a esclarecimento à população.
No caso particular da Hepatite C, temos peculiaridades no Brasil que justificam campanhas de esclarecimento com elevadas chances de sucesso na introdução de muitos pacientes portadores do Vírus na rede pública de saúde.
A Hepatite C tem cura e controle se tratada a tempo. O Ministério da saúde oferece o caríssimo tratamento cuja duração varia de 24 a 48 semanas. Falta-nos detectar os pacientes que estão fora da rede de assistência.
Do ponto de vista histórico, informo que em 1999, o ambulatório de doença de fígado do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da UFBA em Salvador-BA, observou um elevado número de ex-jogadores de futebol da Bahia freqüentando o ambulatório. Um deles me referiu a perda de muitos colegas contemporâneos do seu time da região de Feira de Santana-Ba.
Naquele momento, foi solicitado a este paciente que convocasse todos os seus colegas, doentes ou não, para uma avaliação. Para surpresa de todos, quatro deles atenderam ao nosso pedido e os quatros foram avaliados. Todos eles tinham Hepatite C, embora três deles não tivessem qualquer sintoma.
Realizada a análise genética do Vírus percebeu-se que se tratava da mesma fonte. Este artigo foi publicado em 1999 na conceituada revista médica internacional American Journal Gastroenterology.
A partir de então, vários colegas do Brasil se manifestaram no intuito de confirmar que tinham exatamente esta mesma experiência nos seus ambulatórios em São Paulo, Mato Grosso, Ceará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Posteriormente, um dos colegas do Rio Grande do Sul apresentou no Congresso da Associação Européia para o Estudo do Fígado – EASL, o acompanhamento de 71 ex-jogadores de futebol da década de 70 e 80 portadores de Hepatite C.
Na Bahia, em 2007, uma campanha de esclarecimento capitaneada pelo ex-craque de futebol do esporte clube Bahia, DOUGLAS, permitiu a avaliação de mais de 50 ex-jogadores de futebol do estado.
Na avaliação dos fatores de risco desta época, percebemos que estes indivíduos eram expostos a sucessivas injeções de complexos vitamínicos e estimulantes endovenosos (tiaminose, complexo B com vitamina C, glicose, glucanergam, energizam e etc.). Além disso, sofriam sucessivas infiltrações articulares para conter os desgastes das suas articulações pela maratona de jogos.
As seringas utilizadas eram seringas de vidro, com pouco tempo para esterilização, por isso a transmissão se dava entre todos os companheiros, muitas vezes nos vestiários dos seus clubes de futebol.
Mais ainda, esta prática não era só dos jogadores profissionais. Muitos clubes amadores das ligas das pequenas cidades do interior do país a utilizavam também, seguindo o espelho dos ídolos dos clubes maiores.
Também, principalmente no Nordeste, esta era a prática comum entre os foliões do carnaval e das micaretas, os quais recorriam às farmácias para tomar glicose no imaginário de que estariam protegendo os seus fígados dos males causados pelo excesso de álcool.
Assim, esta forma de contaminação se tornou o principal fator de risco para Hepatite C no país, entre homens, que atualmente chegam aos nossos ambulatórios e que têm idade > 45 anos.
Esta é uma peculiaridade brasileira que precisa ser muito bem esclarecida, uma vez que nas campanhas habitualmente implementadas pelos órgãos competentes, fala-se muito nos usuários de drogas ilícitas, todavia os nossos pacientes não se expuseram ao uso venoso de droga ilícita como aconteceu na Europa e nos Estados Unidos.
Este contraste é nítido. Na Europa, 70% dos pacientes masculinos nessa faixa etária, portadores de Hepatite C, têm o uso de drogas ilícitas como causa da sua contaminação. No Brasil, menos de 5% dos nossos pacientes tem como causa drogas ilícitas, contudo o uso de medicamentos lícitos, mas com manipulação inadequada de seringas de vidro e agulhas foi o grande risco de contaminação.
Assim, o paciente que usou esses medicamentos em farmácias ou em seus clubes de futebol não se reconhece como grupo de risco, uma vez que o estigma do grupo de risco é usuário de drogas ilícitas. Este aspecto necessita ser muito bem esclarecido para a nossa população, dado que se trata de uma peculiaridade brasileira.
Em face à essa questão, a Sociedade Brasileira de Hepatologia busca junto a FAAP organizar uma campanha nacional para alertar sobres estes riscos. O envolvimento dos ex-jogadores de futebol é oportuno no país do futebol no ano da Copa do Mundo. Não só ajudará a quebrar preconceitos como também proporcionará um grande impacto na mídia, alcançando os nossos objetivos de informação e educação da nossa população.
Temos ao nosso favor o fato da Presidência da FAAP ser exercida neste momento pelo Sr. Wilson Piazza. Trata-se de um dos grandes líderes da Seleção Brasileira tri-campeã mundial de 1970. O Sr. Wilson Piazza abraçou a causa e envolverá mais outros tri-campeões mundiais, fato que será emblemático, pois foi justamente na década de 70, enquanto comemorávamos o tri-campeonato mundial com a melhor Seleção de todos os tempos, que milhares de brasileiros se contaminaram com o vírus da Hepatite C.
Já iniciamos uma campanha nacional como os nossos modestos recursos, buscando sensibilizar a mídia e utilizando os nossos sites para replicar as nossas ações junto aos membros da Sociedade Brasileira de Hepatologia, das demais sociedades de especialidades e aos associados da FAAP. Este aspecto é louvável, contudo não terá condições de alcançar a grande mídia nem de capilarizar a informação para as pequenas cidades do país onde encontramos também boa parte desses pacientes contaminados, não só pelo Viris C, como também pelo vírus da Hepatite B.
Deste modo, buscamos junto a imprensa a parceria para implementarmos uma grande campanha nacional no ano da Copa do Mundo, para esclarecer este assunto e promover o rastreamento daqueles que se encontram neste peculiar grupo de risco brasileiro.
Para todos os assuntos que envolvam Políticas Públicas de saúde na área das doenças do fígado, a Sociedade Brasileira de Hepatologia estará sempre a disposição.
Mui respeitosamente,
Raymundo Paraná
Presidente